Almir Ribeiro

KATHAKALI – A Arte do Ator-Guerreiro-Bailarino-Sacerdote

“Quando ouvires o chamado do Oriente, já não ouvirás mais nada”. (Kipling)

Segundo a mitologia, o estado de Kerala, no sudoeste da Índia, foi criado por Parasurama, a Sexta encarnação do deus Vishnu, que teria vindo à terra para proteger a supremacia espiritual e social da casta dos brâmanes. De espírito extremamente belicoso e grande guerreiro, Parasurama, após lutar em várias guerras, foi convencido a pôr um fim em sua trajetória sangrenta. Como um gesto simbólico, atirou solenemente seu machado no mar. A arma caiu ao sul da Índia e esse poderoso golpe fez emergir das águas uma faixa de terra, a qual Parasurama batizou de Malabar. Para povoar esta terra, ele trouxe várias famílias brâmanes do norte da Índia, que se estabeleceram e formaram uma sociedade particularmente cativa do gosto pelos rituais.

Após a independência da Índia em 1947, o território do Malabar recebeu o nome de Kerala. Apesar da forte influência do marxismo ( em 1957, foi eleito democraticamente um governo comunista, se tornando o primeiro governo marxista do mundo) e da filosofia materialista, a vida cotidiana em Kerala está intimamente associada ao culto de deuses. Kerala é a terra dos templos. Sua estreita área territorial, abriga mais de dois mil templos em atividade e outros muitos inativos.

O Malabar foi durante séculos a terra das especiarias, o ouro negro, atraindo comerciantes de todo mundo: gregos, chineses, africanos e, mais tarde, portugueses, holandeses e ingleses. O intenso comércio com diferentes culturas, a forte religiosidade e o gosto por grandes rituais religiosos, com a presença constante de elementos dramáticos, formaram os ingredientes necessários para o desenvolvimento da mais espetacular forma de Teatro da Índia: o Kathakali.

O Kathakali é um estilo masculino de Teatro-dança clássico da Índia, e existe, exatamente como se conhece hoje, há pelo menos quatrocentos anos. Suas raízes são encontradas em rituais ancestrais que remontam à época de Cristo. Revitalizado no início do século, reencontrou sua pujança após a independência do país com a criação, no vilarejo de Cheruthuruthy, Kerala, da primeira escola governamental para o ensino das artes, a Kerala Kalamandalam Government School. “Kalamandalam” significa “Academia de Artes” e, de fato, ela não se resume a uma escola de Kathakali, mas de todas as formas de dança, clássicas, folclóricas e rituais de Kerala e de outros estados vizinhos, como o Tamil Nadu (e seu Bharata Natya) e Andhra Pradesh (com seu Kuchippudi). Além disso, possui cursos profissionalizantes de maquiagem, confecção de figurinos, de música clássica, música folclórica e de música para danças. A Kalamandalam atualmente reúne os melhores artistas de quase todas as áreas de Kerala. Isso faz com que os espetáculos da escola sejam sempre os mais concorridos, pois congregam sempre uma constelação de grandes nomes do Teatro e da dança de Kerala.

O ATOR GUERREIRO DANÇARINO SACERDOTE

Na Índia acredita-se que todo palco seja um local sagrado escolhido pelos deuses, onde a eterna luta entre o bem e o mal deve se repetir para sempre. O Kathakali, sendo uma arte essencialmente hindu, é conduzido como um ritual e tudo que é relacionado a ele é investido de um significado religioso. O ator Kathakali sabe que precisa estar apto e pronto para fazer juz, em cena, à poderosa força que transitará por ele, a serviço dos deuses, em busca de revelação: um ator-sacerdote.

Não existe em nenhuma língua ou dialeto indianos, uma tradução para Teatro ou Dança. A palavra “natya” engloba essas duas idéias indissociáveis. Através dessa curiosidade lingüística, se percebe o que na prática é uma realidade: Teatro e Dança na Índia estão amorosamente unidos em uma única manifestação: ator-bailarino.

A formação física destes atores obedecia à antiga tradição de formação guerreira e marcial de Kerala. Os meninos de casta dos guerreiros eram preparados desde os dez anos de idade para as atividades militares. Após anos de treinamento eram selecionados, deste grupo, os futuros atores: um ator-guerreiro.

O ATOR UNIVERSAL

No Kathakali, o ator é ao mesmo tempo bailarino, guerreiro e sacerdote. Sua formação artística busca responder a cada aspecto de sua vida, em relação ao mundo que o cerca. Se o bailarino é aquele que busca o ar, que anseia pelo espaço, pelo etéreo, o ator vai de encontro à terra, que castiga sob seus pés para retirar dela sua energia. Suas mãos buscam o céu e seus pés agarram e excitam a terra. Se a ação do guerreiro é como o do fogo, que destrói enquanto queima, nem bom nem mau, consumindo a si mesmo sem hesitar, o sacerdote se relaciona com a água, com a qual purifica e santifica. Enquanto o fogo guerreiro se move impetuosamente e age buscando cumprir seu papel sem apegos, a água sacerdotal busca a serenidade e, ainda que seja perturbada, sua natureza a guia na direção da paz.

Por isso mesmo, em nenhuma outra forma teatral no mundo, a arte do ator e sua formação técnica encontrou mais complexa e refinada estruturação. Onde nada em cena é deixado ao acaso. Os atores ao entrarem em cena obedecem uma estrutura previamente estabelecida, a partir da qual podem elaborar sua interpretação, atingindo altos níveis de elaboração, onde detalhes e nuances sutis tomam grande importância. Um virtuoso intérprete de uma elaboradíssima partitura cênica.

“Quando a cortina sobe, de fato, é tarde demais para começar um trabalho de arte. Exatamente como um texto de uma peça é o mesmo quem quer que seja o ator ou uma partitura de uma música não varia conforme quem o toque, também não há razão para que uma linguagem cênica deva variar com vista a tirar vantagem da personalidade do ator. É a ação, não o ator, o essencial para a arte dramática.” (Ananda Coomaraswamy)

O ATOR EM CENA

“Não é uma pequena vantagem se Ter cem espadas suspensas sobre a cabeça; assim é que se aprende a dançar, assim é como se consegue a liberdade de movimentos”. (Nieztche)

O Kathakali, mais que a maioria das outras danças clássicas indianas, tem como idéia básica a composição e o desenvolvimento de uma cadeia muscular “antinatural” e rigorosamente definida, cuja manutenção exata de suas tensões permita o fluir da energia a ser empregada no ato da performance. O corpo do ator é modelado durante anos para ser hábil a manter a alta qualidade de energia durante toda a performance.

No Kathakali, mais do que simples e árduo preparo físico, é necessário uma remodelagem da estrutura corporal do ator: muscular, motora, articular e psicológica. Para isso o Kathakali exige dedicação total e exclusiva dos pretendentes durante os anos de aprendizado. Se tomarmos como exemplo a rotina diária dos alunos da Kalamandalam, veremos que os futuros atores aprendem sob uma disciplina quase militar. O dia começa às 4 da manhã com massagens, exercícios físicos e exercícios de olhos, e segue com uma sequência de severos exercícios e treinamentos de dança e textos e termina a noite com a memorização dos textos tradicionais e prática de ritmos. As intermináveis e imprescindíveis repetições associadas à severidade com que são punidos os erros, também moldam a férrea disciplina mental e concentração dos atores. Logicamente, os estudantes costumam dormir cedo. Para novamente recomeçar às 4 da manhã do dia seguinte. As pausas são quinzenais, pois, obviamente, os hindus não têm razão para guardar o Domingo. Todo este processo, que se estende por muitos e longos anos, é rigorosamente supervisionado pelo guru, que constantemente avalia e determina os próximos passos do processo.

O GURU

“A sílaba “gu” significa sombra
A sílaba “ru” aquele que dispersa
Pelo seu poder de dispersar a escuridão
O guru é assim chamado.”
(Advayataraka Upanishad)

Agandanadam, um velho sábio hindu que passava seus dias no pequeno templo de Kuttypuram, as margens do Rio Bharatapuram, no coração de Kerala, dizia que, sendo o Kathakali uma dança sagrada e ritual para os hindus, ela se tornava uma ambiguidade por demais complexa para os ocidentais. Sua concretização não se torna um produto comercial. Dizia: “O Ocidente não entende uma arte espiritual. É um povo adiantado materialmente, mas muito atrasado espiritualmente. Ele afirma que o Teatro é uma manifestação da alma e por isso requer devoção e fervor, pois “é necessário sempre mergulhar profundamente nas coisas as quais nos dedicamos. O Ocidente nos pede minerais, água, gases. Mas devemos escavar em busca do petróleo. Porque gases, minerais, água devem ser simplesmente a consequência dessa busca. O que importa é o petróleo, e é sempre nessa intenção que devemos escavar o que almejamos.”

Nunca soube avaliar precisamente o quanto de exagero existe nesta fábula, ou mesmo se havia algum. Mas com certeza ela carrega algumas verdades. Ele continua dizendo que a saída é aprender a aprender. “Se eu decidisse doar um milhão de rúpias a alguém, em notas de uma rúpia, eu precisaria de um milhão de notas. Mas se eu preferisse doar essa mesma quantia em ouro, bastaria um pequeno pedaço e ele teria o mesmo milhão.” É preciso ser um aluno de ouro.

O amor pela fábula é uma característica do espírito oriental. Os orientais amam a síntese e nós reverenciamos a análise. Nosso mestre de Kathakali na Índia, Nanda Kumaran, também costumava responder com fábulas ou pequenos casos, a perguntas por vezes extremamente banais.

Segundo a tradição, os atores de Kathakali começam seus estudos por volta dos oito anos de idade, sob a orientação severa de um guru. Seus estudos podem se prolongar por até vinte anos. Ao final, recém-profissionalizados, são considerados atores iniciantes. A pujança de sua arte é alcançada por volta dos cinquenta ou sessenta anos de idade.

O sistema de aprendizado através dos gurus faz parte da cultura de quase todos os povos orientais há milênios, e na Índia repousa na consciência popular como o método perfeito de aprendizagem. A Índia reverencia seus mestres, grandes depositários do conhecimento tradicional, através dos quais, segundo a tradição, se obtém o real esclarecimento. Em Kerala, a essa íntima relação entre professor e aluno é dado o nome de Gurukulam. O sistema do Gurukulam entrou em declínio há apenas algumas décadas, mas ainda é encontrado em alguns pontos da cultura indiana. Segundo a tradição, o mestre antes de aceitar um aluno, recolhia o pequeno pretendente em sua casa pelo tempo que achasse necessário. Nesse tempo, ele quase não recebia aulas, reservando todo o seu tempo para executar pequenas tarefas para seu mestre, inclusive domésticas. O mestre assim o avaliava e, se fosse aceito, continuava a servi-lo em todo e qualquer serviço. Em troca obteria, gradualmente, o conhecimento almejado. Esse processo podia levar 15, 20, 25 anos ou mais. E, ao final, o aluno se tornava o “portador” do conhecimento que antes era de seu mestre. O aluno passava a Ter a missão de perpetuar a “alma” do guru. Por isso recebia o direito e a honra de adicionar o nome de seu professor ao seu próprio nome.

“A alma somente pode receber impulsos partidos de uma outra alma. Podemos estudar em livros por toda a vida, podemos nos tornar intelectuais, mas no fim vamos perceber que não desenvolvemos nossa espiritualidade. Não é verdade que uma grande quantidade de desenvolvimento intelectual sempre ande de mãos dadas com um proporcional desenvolvimento espiritual. Para agilizar o espírito, o impulso precisa vir de uma outra alma. A pessoa de cuja alma parte esse impulso é chamada “Guru”. (Swami Vivekananda)

O ATOR-GUERREIRO

Na transmissão da tradição no Kathakali, o sistema Gurukulam era apenas um dos aspectos. O preparo de um ator para o Kathakali obedecia a antigas tradições guerreiras reservadas aos filhos de famílias Kshatrias, a casta dos guerreiros. Até dois séculos atrás, os garotos Kshatrias eram criados separadamente e introduzidos desde muito cedo às artes da guerra, baseando seu treinamento físico na tradicional arte marcial de Kerala, o kalaripayattu. Esses pequenos guerreiros viviam em conjunto sob a custódia das mulheres da família, e tinham aulas em uma sala, Kalari, anexa à casa onde moravam. Mestres em Kalaripayattu os guiavam nessa técnica marcial, preparando-os para as constantes guerras. Quando escolhidos para serem iniciados nas artes cênicas, eram separados em outro grupo, onde se especializavam como atores. No entanto, era comum que, após alguns anos, os alunos mais adiantados do grupo de futuros atores, se submetessem ao Gurukulam buscando um aprimoramento técnico junto a um mestre renomado. Assim, aspectos das duas tradições se complementavam: a tradição das kalaris, de formação de guerreiros, com sua árdua formação física e disciplinada e o sistema Gurukulam, com sua devoção integral (física e espiritual) ao guru inspirada nos mais caros princípios éticos e religiosos hindus.

“Foi a misericórdia de meu mestre que me fez conhecer o desconhecido. Dele aprendi a andar sem pés, a ver sem olhos, a escutar sem ouvidos, a beber sem boca e a voar sem asas.” (Kabir)

O ATOR-DANÇARINO

O Kathakali apesar de fazer uso de grandes textos em versos e prosa e de se valer da grande tradição literária do estado de Kerala; não usa a voz para recitar seus textos. O ator Kathakali se utiliza de um código gestual, denominado mudras, que abarca todas as palavras conhecidas. Tendo como base 24 posições estáticas feitas com a mão, como se fossem letras, que, combinadas a movimentos de tronco, braços e rosto dão origem às palavras, esse complexo sistema de comunicação engloba todas as possibilidades idiomáticas e sua estruturação é perfeitamente comparável a um verdadeiro idioma. Exemplo disso é o estudo da gramática do Kathakali, que constitui um campo de estudo e pesquisa autônomo.

É um surpreendente paradoxo como uma arte clássica, rigidamente elaborada como o Kathakali e que se utiliza de uma linguagem gestual hermética para comunicar seus textos, possa ser ao mesmo tempo ( e ainda hoje) tão popular. Geralmente, pressupomos que as artes clássicas sejam feitas para uma elite intelectual. E, no entanto, ainda que nem todos entendam a linguagem utilizada pelo ator, é difícil encontrar alguém em Kerala que não aprecie o Kathakali.

O ATOR-SACERDOTE

O ator Kathakali tem em seu rosto o seu principal meio expressivo. Através de um longo e rígido treinamento muscular da face, estes atores são capazes de um altíssimo grau de expressividade facial, “esculpindo” com extrema precisão, nuances em seu próprio rosto através de um absoluto controle de minúsculos movimentos em pequenos músculos da face.

A maquiagem do Kathakali está entre as mais complexas do mundo. Junto com o fantástico e majestoso figurino, o Kathakali busca desumanizar a figura do ator, para fazer aflorar as figuras mitológicas que povoam a dramaturgia indiana. O ator é preparado longa e minuciosamente para que, em cena, utilize sua técnica para disponibilizar-se, para ceder lugar em seu corpo à energia que atuará sobre ele no momento da representação. Devemos pensar nesta energia não como uma coisa esotérica (ainda que fosse possível), mas como um fluxo de energia física concreta que percorre o corpo do ator devido, entre outras coisas, à enorme cadeia de tensões musculares, muitas delas antagônicas.

Segundo a mitologia indiana, a arte teatral surgiu como modo de tornar os profundos ensinamentos dos Vedas acessíveis a todas as castas. O caráter sacerdotal da performance do ator, no entanto, vai além da função de propagar a sabedoria védica: ela requer uma identificação mística entre ator e os deuses que devem encarnar em cena. O processo de transformação pelo qual passa o ator, desde sua maquiagem até sua aparição em cena, anula completamente a noção de identidade pessoal, abolindo qualquer vestígio de humanidade em sua figura.

O ator Kathakali tem consciência que é também um sacerdote e que deve corresponder, dentro e fora de cena, a essa responsabilidade. Uma curiosidade revela nitidamente seu papel sacerdotal: é comum, antes do início do espetáculo, oferecer dinheiro ao ator que representa Krishna, como se o entregassem ao próprio deus em razão de alguma graça. A comida ou a água tocada em cena pelo ator que interpreta Krishna, também é recebida como se fosse abençoada pelo próprio deus.

“No Kathakali, o ator uma vez maquiado, já não é ele mesmo. Tampouco nos dirigimos mais a ele, mas sim ao personagem que encarna, e o veneramos como tal.” (Alain Daniélou)

O TRATADO SOBRE O TEATRO

Quando os textos religiosos se tornaram um privilégio de uns poucos letrados, os deuses apelaram à Indra, o rei dos deuses, para que fosse criado um modo de divulgar os quatro livros dos Vedas, que pudesse ser visto, ouvido e compreendido por todos, independente de cultura ou casta. Indra incumbiu ao sábio Bharata Muni de criar esse “Quinto Veda” , que popularizasse os ensinamentos tradicionais. O fruto de seu trabalho é o que conhecemos como Natya Shastra. Esse livro deveria ser uma espécie de “manual” para esse novo modo de divulgação dos vedas, popular o bastante para ser compreendido por todos. E assim teria nascido o Teatro na Índia.

Escrito por volta do século II a.C., o Natya Shastra é o mais antigo livro existente sobre as artes cênicas. Uma verdadeira enciclopédia teatral, ele especifica detalhadamente todos os aspectos que envolvem uma representação dramática, desde as cores adequadas para a maquiagem, passando pela formação técnica dos atores, tipos de movimentos de cada parte do corpo, até a maneira correta de construção dos teatros, em suas exatas proporções. As indicações ditadas pelo Natya Shastra regulam ainda de forma marcante, dois mil e duzentos anos depois de ser escrito, a prática de todas as formas dramáticas na Índia.

É interessante refletir sobre a necessidade que levou esses “atores”, há dois mil anos atrás, estabelecer claramente o correto procedimento e a natureza do acontecimento sobre o palco.

“O sábio Bharata Muni trouxe então à mente todos os Vedas e criou o ‘Natya Veda’ , nascido dos quatro primeiros: – ‘Eu desenvolvi este Veda intitulado Natya a partir de suas bases históricas. Sua prática deverá conduzir à retidão e servirá como um gui em todas as atividades humanas das futuras gerações'”. (Natyashastra)

A LONGA NOITE DO KATHAKALI

Um espetáculo de Kathakali normalmente dura toda a noite e é iniciado por volta das seis horas da tarde, chegando ao fim apenas com a aurora do dia seguinte. Espetáculos de Kathakali geralmente são realizados como uma oferenda ao templo e sua divindade regente, e por isso obedecem a uma seqüência ritual de etapas sagradas. As várias cerimônias que preparam a performance tem início pela manhã, bem antes do primeiro ator pisar o palco, com rituais no interior do templo e com músicos que percorrem os arredores anunciando o espetáculo que acontecerá à noite.

Quando chega o crepúsculo, uma grande lâmpada a óleo é colocada na parte da frente e central do palco. A chama que acenderá essa lâmpada deve ser trazida da lâmpada que ilumina a sala de maquiagem que, por sua vez, deve ser trazida da lâmpada que está ao pé da imagem do deus, dentro do templo. É importante que a luz que ilumina o espetáculo seja, simbolicamente, a mesma luz do deus. Os hindus acreditam que o fogo purifica e que a sinceridade da atuação do ator pode ser avaliada através desse fogo que separa o espectador do ator. O fogo com seu poder destruidor só permitiria que a “Verdade” o atravessasse. Existia uma outra motivação bem menos sagrada, mas muito prática, para a colocação da lâmpada sobre o palco: há muito tempo atrás, sem o recurso da energia elétrica, ela era a única iluminação para a performance. A lâmpada, com sua luz tremulante, emprestava ao espetáculo um universo de sombras e efeitos, e trazia com força à tona a face sobrenatural e encantatória do Kathakali.

Atualmente, no entanto, as quedas de energia durante os espetáculos não são difíceis de acontecer. Nesses casos, quando se tem esta sorte (e os organizadores o grande azar), é possível, durante alguns minutos, saborear o Kathakali como era feito no começo do século e atestar seu efeito assombroso.

Com o cair da noite, tudo deve estar pronto no palco e a última cerimônia no interior do templo, concluída. O primeiro som a se ouvir sobre o palco deve ser a batida grave do tambor, simbolizando o grande som original, o primeiro som do Universo. Segundo a lenda, o deus Shiva criou o Universo batendo violentamente em seu tambor (uma versão hindu para o “Big Bang”). Essa pequena introdução de música instrumental onde os dois tambores da orquestra dialogam é denominada Keli e serve para avisar ao povoado que o espetáculo está prestes a começar, uma vez que as batidas possantes desses tambores poderão ser ouvidas a quilômetros de distância.

Após o Keli, começam as danças. Uma cortina é trazida ao palco e, sustentada por dois homens à frente do palco, parece esconder mais o público do ator, do que o ator do público. O momento em que o ator está atrás da cortina, prestes a iniciar, ainda que parcialmente visto, é de intensa concentração. É quando ele saúda a Deus e roga pelas suas bênçãos.

Um dos momentos mais intrigantes do espetáculo é exatamente a primeira dança, chamada Todhayam. Com uma duração de 30 minutos, ela é toda realizada atrás da cortina. É uma dança propiciatória e pede a benevolência dos deuses para o espetáculo a ser apresentado, sendo eles sua única assistência. Após o Todhayam, os ajudantes que mantinham a cortina, saem, levando-a consigo. Tem início então o Purappadu, uma dança introdutória realizada normalmente por Krishna e sua consorte, Radha (ou Rukmini). O Purappadu no início do espetáculo tem um caráter simbólico, evocando a união entre Krishna e sua shakti, ou energia criadora, representada na forma feminina. No Hinduísmo, a união entre os sexos remete à busca humana de união com o divino. O Purappadu reelabora em cena a eterna comunhão dos contrários, que se complementam para gerar a tudo o que existe.

Nesse ponto começam as histórias, as peças propriamente ditas. Geralmente são apresentadas duas ou três peças por noite, cada uma tendo de duas a quatro horas de duração. Retiradas dos grandes épicos, Mahabharata, Ramayana e Bhagavad Purana, as histórias revelam um universo povoado de deuses, super homens, demônios e animais mitológicos. A programação da noite se encerra habitualmente com uma peça onde, no final, um demônio é infalivelmente morto de forma terrível, em uma cena de grande impacto. Ao final do programa, quase sempre sob as primeiras luzes da manhã, Krishna retorna à cena para uma rápida dança de agradecimento aos deuses e à platéia.

O TEATRO DAS ORIGENS

Acredito que o pior que se pode fazer quando se entra em contato com uma cultura tão diferente da nossa, como a indiana, é guardar esta informação em um arquivo de coisas curiosas ou excêntricas, restringindo seu alcance sobre nós mesmos e neutralizando seu poder de nos fazer refletir. Tenho confiança que o que nos afasta de qualquer outra cultura (assim como o que afasta um ator oriental de um ator no Brasil, por exemplo) é infinitamente menor do que o que nos aproxima. As elaborações externas de uma forma de dança ou de um ritual é fruto de uma necessidade irresistível e comum a todos os seres humanos. A formalização em si é uma casca tênue que esconde uma essência poderosa, universal e eterna.

O Teatro clássico na Índia surge de uma circunstância maravilhosa e é ao mesmo tempo a razão dessa circunstância. Um Teatro com o sentido de suas origens. Traçar a origem de uma manifestação teatral, na verdade, deveria ser tarefa para historiadores. Mas talvez valha a pena pensar em resgatar para a nossa arte cênica contemporânea algo da essência, do significado perdido (relembrado sempre com inegável e atávica nostalgia), que ainda se encontra vivo e pulsante nesse Teatro das origens, o Kathakali.

“Quando se observa atentamente a tremendamente impressionante personificação de deuses, feitas pelos dançarinos de Kathakali do sul da Índia, não há sequer um gesto natural a ser visto. Tudo é bizarro, tanto sub-humano e super humano. Os deuses-dançarinos não andam como pessoas, eles deslizam; eles não parecem pensar com suas cabeças, mas com suas mãos. Mesmo as faces humanas desaparecem atrás das máscaras esmaltadas. Nosso mundo não oferece nada que possa ser comparado a tal grotesca magnificência. Quando se assiste a um desses espetáculos, se é transportado ao mundo de sonhos, porque lá é o único lugar onde se pode conceber algo similar. Não há sombras ou semelhanças de uma realidade original, são mais como “realidades que ainda não foram”. Realidades em potencial, as quais podem saltar o limiar da existência.” (Carl G. Jung)

Almir Ribeiro (autor)
Almir Ribeiro, ator e diretor teatral, é um estudioso das formas de Teatro Clássico Oriental e suas relações com a religião. Após um longo período de moradia da Índia para estudo e pesquisa do Kathakali, Almir divide seus conhecimentos no livrro “Kathakali – Uma Introdução ao Teatro e ao Sagrado da Índia”.

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