Renato Ferracini

A Mímesis Corpórea

A Mímesis Corpórea é um meio particular do LUME para a apreensão de matrizes (ações físicas vocais orgânicas). Seu estudo é tão complexo e pormenorizado que se transformou em linha de estudo independente dentro do Núcleo.
Ela possibilita ao ator a busca de uma organicidade e de uma vida a partir de ações coletadas externamente, pela imitação de ações físicas e vocais de pessoas encontradas no cotidiano. Além das pessoas, ela também permite a imitação física de ações estanques como fotos e quadros, que podem ser, posteriormente, ligadas organicamente, transformando-se em matrizes complexas. Cabe ao ator a função de “dar vida” a essa ação imitada, encontrando um equivalente orgânico e pessoal para a ação física/vocal.
Enquanto preparação do ator, faz com que ele saia de si e olhe para o exterior. Até o momento, todos os trabalhos, tanto o treinamento energético como o trabalho com animais, buscavam um mergulho interior do ator para descobrir sua organicidade e corporeidades. O trabalho com objetos proporciona um diálogo interno/externo simultâneo, enquanto a mímesis inaugura uma nova etapa de trabalho: também um mergulho, mas a partir de uma vivência externa e objetiva. E esse universo exterior é um passo importante na formação de um ator. Carlos Simioni também coloca essa questão:

“Depois de aprofundar este tema, percebemos que faltava, ainda, mais um elemento para podermos avançar. Temos o “ator pessoal”; ele desenvolveu e codificou suas energias pessoais, seus movimentos gestos, seu modo agir, sua lógica, recolhendo, assim, universo materiais composições. Esta é a lógica. avançar, precisa descobrir do outro. Surge, então, no Lume, “Mímesis Corpórea”, [… que] se desenvolve por si só, qual elaborada uma técnica própria, mas com destino marcado, avanço da nos propomos. ” (1)

E Ana Cristina Colla dá um panorama:

“A mímesis me fez descobrir a beleza das pessoas à minha volta, no momento em que me obrigou a observá-las com novos olhos. Através dela vivi, em meu corpo, a fragilidade da Dona Maria, velhinha que me acompanhará em meus dias com sua beleza e seu riso estridente. Enquanto tema de pesquisa, expandiu o universo de possibilidades a serem desenvolvidas:
1) Observação: como e o que observar na coleta de ações,
2) Codificação e memorização das ações observadas, exteriores a mim, já que eram coletadas de outra pessoa, animal ou foto. O que suscitou novas dificuldades, pois até o momento só havia trabalhado com ações surgidas em sala de trabalho.
3) E finalmente, como dar a minha vida a essa ações, sem roubar-lhes a particularidade. Como “colar” as ações de outro ser em meu corpo respeitando-lhe as características próprias. Como imprimir em meu corpo jovem os oitenta anos vividos por Dona Maria ” (Entrevista concedida em 1997).

Convém fazer uma rápida reflexão sobre a questão da palavra “imitação”. O LUME não usa essa palavra para nomear sua pesquisa nessa área, pois ela pode sugerir uma imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é esse o objetivo. Buscamos uma imitação precisa e real, sim, não só da forma e da fisicidade, mas principalmente das corporeidades da pessoa. Nos escritos de Luís Otávio Burnier, dizendo sobre o processo da montagem Wolzen, que se utilizou dessa pesquisa:

Não nos interessava uma imitação aproximativa dos doentes, mas uma imitação precisa e perfeita de suas ações físicas e vocais. Não nos interessava a pessoa do ator, ou seja, o que as atrizes haviam sentido ao verem os pacientes, mas suas ações físicas, o o que e o como eles, precisa e objetivamente, faziam, agiam ou reagiam com o corpo, suas corporeidades (1994, p, 221).

O LUME, portanto, fala em Mímesis Corpórea ou Mímesis das Corporeidades, numa tentativa de se distanciar da palavra imitação, mesmo sabendo que ambas significam o mesmo em nível lingüístico. Na verdade, uma definição mais precisa seria algo como “equivalências orgânicas de observações cotidianas”, pois busca imitar não somente os aspectos físicos, mas também os orgânicos, encontrando equivalências para esses últimos. Essa é a busca básica, que suscita uma pergunta também básica: como fazer para imitar essa organicidade? Para respondermos a essa questão, e também para o melhor entendimento da ferramenta preciosa que é a mímesis corpórea na formação do ator, será necessário fazer alguns apontamentos sobre a pesquisa desenvolvida, tanto em âmbito mecânico como orgânico.
Nos primeiros passos do processo da criação da metodologia de mimesis corpórea como ferramenta de criação do ator, observava-se a pessoa que seria imitada e partia-se para o trabalho prático em sala, tendo, em primeira instância, uma visão do todo, globalizada, ou seja, os atores-pesquisadores buscavam a organicidade das ações imitadas sem uma separação clara do gesto, da voz e da energia. Esse processo só foi possível porque a pesquisa de campo, em relação à observação, foi realizada na própria região, sendo viável retornar à fonte sempre que necessário para sanar dúvidas decorrentes do trabalho prático em sala e esclarecer detalhes técnicos na observação.
Quando a pesquisa de campo é realizada em regiões distantes, como foi o caso recente da pesquisa feita na região amazônica, o retorno freqüente à fonte é inviável. Portanto, nesse novo processo, o ponto de partida não pode ser o todo, mas deve, necessariamente, ser dividido em partes precisas, pois os atores contam apenas com os registros de anotações, fitas gravadas, fotos e a memória de alguns poucos encontros.
Pode-se perguntar, então, por que não gravar esses encontros em vídeo? Porque, embora tenhamos tentado fazê-lo no início, percebemos logo que as pessoas portam-se de maneira diferente diante de câmera, determinando, assim, uma relação diferente entre ator-observador e pessoa-observada — menos humana e mais formalizada. Percebeu-se, também, que mesmo a relação da pessoa com o próprio gestual e ação vocal modifica-se diante da câmera de vídeo. Assim, a relação formalizada e estilizadora provocada pela câmera pode, de certa forma, criar uma imitação também estilizada, pois provém de uma relação “não natural” e “filtrada” entre observador e observado. Convém dizer que

um fator fundamental para a escolha de uma imitação é a identificação que surge entre o ator e o observado, podendo essa identificação se dar de diversas formas, quase sempre não explicáveis, pois às vezes uma forte repulsa pode despertar o desejo de uma imitação. Também é mais interessante para um ator buscar imitações que tragam fisicidades e ações mais marcantes e complexas, pois normalmente são as mais teatrais. As sutilezas também são muito intrigantes, mas funcionam mais como exercício de treinamento, do que como resultado teatral.(2)

Assim, sem a ferramenta do vídeo, torna-se necessário, para o ator, trabalhar a mímesis de cada parte (texto, ação vocal, ação física, fotos) para construir a personagem, como um processo de colagem de partes. A seguir, descreveremos exemplos de como são coletados estes materiais que servirão de base futura para o trabalho prático em sala. Estes exemplos foram embasados nos escritos das atrizes-pesquisadoras Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson:(3)

Anotações
Abaixo, exemplificaremos o modo como as anotações são realizadas, no momento da observação. Normalmente, quando temos um curto período de tempo para a observação, faz-se necessário que a anotação seja o mais sucinta possível, sem perder a precisão nos detalhes, fundamentais no momento de imitação posterior. Alguns códigos e pontos-chave são estabelecidos para melhor compreensão, desenvolvidos por cada ator-pesquisador ao longo do seu trabalho:

Duca morador da cidade de Barcelos, AM, vive nas ruas ou em casas abandonadas, recebe ajuda dos moradores da cidade, os quais lhe dedicam bastante carinho por ser ele bastante dócil e prestativo. Idade indefinida, corpo bastante maltratado, mas com ar infantil, sempre sorridente. Possui uma deficiência física que o faz caminhar apoiado num pedaço de pau, que faz às vezes de muleta. É mudo, comunica-se por meio de alguns sons e gestos.

• Faz “sim” com a cabeça, tremelicando o corpo, esticando e apertando os lábios e olhos, às vezes abre a boca. Puxando e soltando ar pelo nariz, sonoro. Pequeno, várias vezes;
• gestos meio descordenados;
• aponta os lugares. Quando aponta, empina o corpo. Lordose;
• aponta também com a cabeça e queixo, grande;
• aponta as pessoas que passam na rua, mão solta, como se apontasse com o punho;
• respira fundo pelo nariz, sobe peito e solta;
• trovão, gesto de dormindo, sacudiu o corpo, balançou os braços, imitando tremor;
• sons êêê; *
• faz pose para a foto, ri;
• às vezes solta a coluna, levanta a cabeça, deixa a nuca grudada nas costas;
• mão no queixo, sempre;
• olha quem passa, parado;
• ouve caminhão, olha, acompanha com a cabeça;
• estica pescoço para o lado para tomar sol no rosto;
• coça cabeça com a mão esquerda na nuca, mão meio boba;
• pernas juntas, mocinha, meio de lado;
• olha para o lado, ri sem porquê;
• longo tempo parado, olhando;
• às vezes, olha só com a cabeça, outras com o corpo todo;
• tosse rouca, trovão, balança o corpo.

As anotações prosseguem, mas se tornaria bastante extenso relatá-las na íntegra.
Essas anotações são executadas de acordo com a ordem cronológica em que foram realizadas as ações, ajudando, assim, a recompor os fatos, o que não significa, necessariamente, que no momento da utilização desse material, essa lógica deva ser respeitada.
Quando possível, a anotação deve ser realizada simultaneamente à observação, do contrário é necessário que ela seja feita o mais próximo possível desse momento, para que informações importantes não se percam nesse espaço de tempo.
Os atores tiveram com Duca um pequeno contato e puderam observá-lo durante algumas horas. Nesse caso, tiveram que equilibrar o tempo da anotação com a simples observação, para não correrem o risco de perder algumas ações e o contato se tornar por demais frio e distante, causando constrangimento para a pessoa observada. Duca também foi observado a distância, para que fosse testada a variação de sua gestualidade em outras situações, sem o contato direto e com outros estímulos do local onde se encontrava, ou mesmo para observá-lo simplesmente num estado de contemplação.
Muitas são as maneiras de estabelecer contato, dependendo da pessoa observada e do tipo de material desejado. Se pretendemos coletar ações de como essa pessoa se relaciona em seu meio natural, ou mesmo ouvi-la contando histórias, faz-se necessário o contato direto e, se possível, permanente, em dias alternados, para que, assim, se possa observá-la em diferentes situações, enriquecendo a gama de ações observadas. Nesse caso, é possível interferir na situação, conduzindo a conversa para determinados temas que possam alterar o estado de ânimo do observado, como, por exemplo, remetê-lo a lembranças de infância, ou situações que lhe provoquem riso, raiva, constrangimento. Outra forma é a observação distante, sem contato direto, como nas ruas, em bares, pontos de ônibus e outros locais, onde a pessoa não se sente observada, mas livre para ações que não utilizaria, normalmente, em um contato direto.
A observação detalhada e, em alguns casos, o contato, são fundamentais para o trabalho cujo objetivo seja chegar à mímesis mais precisa da pessoa. Por isso, uma frase simples e banal como “respira fundo levantando os ombros…”, para o ator está totalmente ligada à pessoa imitada e não a outra qualquer, pois ele tem a memória de todos aqueles fatores que estão contidos nessa ação.
Por outro lado, a mímesis tem como característica a diversidade de possibilidades. Usando, como pequeno exemplo, o material de anotações que temos acima, ele só tem utilidade para os atores que estiveram em contato com a pessoa observada, podendo, inclusive, funcionar como a única forma documentada da observação. No entanto, no caso das fotografias e das fitas cassete gravadas, temos documentos que podem ser utilizados por outro ator, pois existe uma metodologia para trabalhar a imitação somente a partir de fotos, e também há a possibilidade de as fitas serem material para uma imitação puramente vocal. A intenção da pesquisa em questão era chegar, primeiramente, a um material bruto, codificá-lo e depois permitir que ele se transformasse.

Registro fotográfico
Material imprescindível, principalmente nos casos em que a observação foi realizada em um único contato. Fundamental na elaboração do material, pois registra precisamente posturas físicas e situações observadas.
Podem ser realizadas com o consentimento da pessoa, que normalmente sente muito prazer em ser fotografada. É muito comum toda a família se preparar para esse momento, penteando os cabelos, trocando as roupas das crianças, fazendo poses. Quando possível, costuma-se enviar cópias das fotos para aqueles que nos pedem; são guardadas como preciosidades. O único empecilho, nesses casos, assim como acontece nos vídeos, é que as fotos são posadas, e portanto, estilizadas, e não registram o momento em seu estado puro e natural. Por esse motivo, tenta-se, sempre que possível, após estabelecido o contato, fotografar ao “acaso”, sem que a pessoa tenha tempo de se preparar previamente. O mesmo acontece quando se fotografa a distância, sem estabelecer contato.
Como já mencionamos, ao contrário das imitações, o material fotográfico pode ser utilizado por outros pesquisadores, mesmo que não estivessem presentes no momento registrado. Precisamente, as posturas físicas, máscaras faciais, entre outros, tornam-se passíveis de ser reproduzidas por outro ator que queira utilizar-se do material, cabendo a ele imprimir o “recheio”, ou seja, o que dá vida à foto. A liberdade de manipulação é muito extensa, cabendo ao pesquisador explorar o material em toda sua extensão, preenchendo-o com os elementos que compõem sua pesquisa pessoal.

Registro sonoro
Normalmente, o registro sonoro é realizado com um pequeno gravador, que deve ser utilizado de maneira discreta para não ser motivo de constrangimento para o observado.
Na maioria das vezes, a gravação é realizada com o consentimento da pessoa, que após alguns minutos, esquece que está sendo gravada e passa a agir normalmente. Em alguns casos, quando se observa alguma criança ou idoso, que não entenderia do que se trata, a gravação é realizada sem o consentimento dos mesmos, melhor dizendo, sem o pedido de consentimento.
Ao longo desse período de pesquisa, alguns casos curiosos aconteceram. O primeiro deles ocorreu em Paranã, Estado de Tocantins, quando da primeira pesquisa de campo utilizando essa metodologia. Os atores visitavam Seu Pedro da Costa e já haviam gravado algumas canções, que ele cantava com muito orgulho, quando veio a pergunta: “E dá pra ouvir, assim, na hora?” Os atores responderam que sim e que os desculpasse pelos chiados da gravação, pois o gravador não era muito bom; ele, por sua vez, com toda sua doçura e ingenuidade respondeu: “É, tamém o dia hoje tá meio nublado, num tá muito bão pressas coisas, né?!” A partir desse momento, a cada canção ou história contada, os atores deviam voltar a fita para que ele pudesse ouvir, com os olhos brilhando, a própria voz no gravador.
Outro caso foi com o Seu Renato Torto. Ao dar-se conta do gravador, passou a falar ininterruptamente, relatando um causo após o outro. Alguns meses depois, quando os atores retornaram, Seu Renato recebeu-os com a pergunta: “Cadê o gravador?” Os atores responderam que, dessa vez, não tinham levado. Ao saber disso, ele perdeu o interesse, não disse mais nenhuma palavra e deixou os atores entregues aos cuidados de sua mulher.
Relatamos esses dois casos no sentido de ressaltar que, em nenhum momento, o material de registro, como fotos, gravações e anotações, é coletado de forma ofensiva, que possa vir a incomodar ou agredir a pessoa observada. Desde o momento em que o contato se estabelece, a preocupação primeira, além da coleta de material, é o profundo respeito e carinho que dedicamos a essa pessoa. Temos sempre a preocupação de tentar retribuir o muito que estamos recebendo.
Em geral, são pessoas profundamente carentes de contato humano, principalmente quando se trata de pessoas idosas, já relegadas pela própria família. Embora esse não seja o objetivo primeiro da pesquisa, é inegável o bem-estar que os pesquisadores proporcionam a essas pessoas, dando-lhes atenção e tornando-as protagonistas de suas histórias.
Como no caso da fotografia, as gravações também podem ser utilizadas por outros pesquisadores, pois contêm todas as informações necessárias para a imitação das ações vocais.

Objetos
Ainda outra maneira de tentar reter a situação o mais globalmente possível, ampliando as possibilidades, é a coleta de objetos pertencentes à pessoa, que muitas vezes são ofertados aos atores como lembrança. Quando isso não ocorre, eles tentam adquirir objetos próprios da cultura local. No caso da recente viagem para o Amazonas, para fins de pesquisa de mímesis, os pesquisadores coletaram, cada um em sua região de pesquisa, cestos e redes de materiais diversos, roupas e adereços utilizados em festas locais, instrumentos musicais, bancos de diversos tamanhos, artesanato indígena, entre outros.
As anotações pessoais, juntamente com o material fotográfico e sonoro e, é claro, a memória do momento, vêm formar o conjunto fundamental para o momento posterior de retomada e elaboração do material coletado.
Nas primeiras reflexões sobre o processo metodológico da mímesis, em sua tese de doutoramento, Luís Otávio Burnier definiu algumas etapas de trabalho, tomando como base os experimentos decorrentes das observações realizadas em pequenas distâncias, quando o retorno à fonte era possível. Assim, a divisão das etapas de trabalho foi realizada tomando por base apenas um objeto observado, no caso a própria pessoa, que era, podemos definir, apenas um elemento de estudo. Assim, temos a OBSERVAÇÃO da pessoa, a posterior IMITAÇÃO e MEMORIZAÇÃO das ações físicas e/ou vocais e sua CODIFICAÇÃO por repetição. Finalmente, a etapa de TEATRALIZAÇÃO dessas ações e sua aplicação na cena.
Com a pesquisa sendo realizada em regiões distantes e a volta à fonte impraticável, não temos apenas um elemento de estudo (a pessoa), mas pelo menos três elementos concretos: as anotações (das ações físicas), o registro fotográfico (alguns gestos, posturas e ações) e o registro sonoro (ações vocais), todos apresentados acima. E temos, além desses, um quarto elemento, este um pouco mais complexo, que poderíamos chamar de “memória energética” ou “interiorização muscular orgânica”. Esse elemento será discutido posteriormente.
Assim sendo, temos que aplicar as divisões propostas por Luís Otávio Burnier a cada um dos objetos de estudo (anotações, fotos e gravações), gerando uma nova aplicação metodológica de apropriação corporal e prática do material recolhido. Uma primeira divisão prática do trabalho pós pesquisa de campo pode ser:

1. Mímesis das ações vocais
– Ouvir as fitas seguidas vezes
– Consultar as anotações
– Imitar
– Memorizar
– Codificar

2. Mímesis das ações físicas
– Consultar as anotações
– Imitar
– Memorizar
– Codificar

3. Mímesis das fotos
– Selecionar
– Observar
– Imitar
– Criar ações a partir das fotos
– Memorizar
– Codificar

4. Colagem das partes
– Agrupar texto, ação vocal, ação física e ações a partir das fotos em uma só pessoa/personagem imitada
– Memorizar
– Codificar

Como a TEATRALIZAÇÃO subentende a aplicação da mímesis na cena, não existe diferença nesse ponto. O que difere, como visto, é o processo para se chegar à pessoa imitada, determinado pela maneira de realização da pesquisa de campo. A teatralização é o universo de aplicação artística da mímesis. A imitação pode ser usada como uma personagem completa ou ainda ser desconstruída em ações físicas e/ou vocais separadas para uma possível reconstrução de um terceiro elemento. A mímesis, na verdade, instrumentaliza o ator, proporcionando a ele uma gama de ações físicas e vocais orgânicas para o exercício de criação na cena. A reflexão sobre o aprofundamento da mímesis leva, também, à elaboração de uma metodologia cada vez mais rica para a transmissão da arte de ator, portanto com fins pedagógicos.
Convém dizer, também, que essas divisões e subdivisões do processo descritas acima, não são suficientes para uma mímesis orgânica. Elas ajudam, sim, no processo organizacional da realização mecânica da pesquisa, mas até agora não falamos sobre a essência da mímesis, que na realidade é a essência de todo o trabalho de ator quando parte de uma ação externa a ele: a transformação de uma ação física e/ou vocal imitada, e portanto mecânica em primeira instância, em uma ação física orgânica e viva.
Primeiramente, para que possamos detectar os caminhos que levam a esse processo de transformação mecânico/orgânico, podemos perceber uma interfase entre os processos de observação e posterior memorização e codificação. Essa “interfase” sempre esteve presente, mas não conscientemente. O fato de nas últimas pesquisas de campo a fonte posterior de trabalho prático em sala residir nos materiais de registro e na memória do observador, fez com que este ponto se esclarecesse. Trata-se do momento em que o ator, aos poucos, consegue se “soltar” do material de registro e começa a preencher a pessoa/personagem imitada com “vida” e liberdade, pois tem toda a parte mecânica interiorizada. O ator pode começar a imprimir sua organicidade às ações físicas e vocais. O tempo e a dedicação contínua de muitas horas de trabalho cotidiano são elementos responsáveis pela realização plena desta fase da pesquisa.
Podemos denominá-la “interfase de interiorização”.
A interiorização deverá, sempre, estar presente e será de fundamental importância para que a mímesis realize-se com profundidade e verdade, sendo assim uma manifestação artística do corpo, e não a mera estereotipização do cotidiano observado.
Outro elemento, aparentemente abstrato, dentro dessa fase de interiorização, é a percepção, ainda durante o processo de observação em campo, de elementos que poderíamos denominar “memória energética”.
Durante a recente pesquisa de campo na região amazônica, os atores voltaram, além do material concreto de estudo citado acima, com elementos de vivência. Um fator muito citado foi a percepção de uma forte sensualidade do povo do Pará e Amazonas, ou ainda a dor do abandono encontrada nas pessoas idosas, ou mesmo o desespero e a autodestruição coletiva de uma cultura que percebe seu fim, como a cultura indígena. Convém dizer que essas não são afirmações antropológicas científicas que buscam definir culturas e tendências deste ou daquele povo ou lugar, mas simplesmente percepções de atores-pesquisadores que, de certa forma, “sentiram” esses elementos nos encontros com as pessoas. Ora, essas percepções não podem ser fotografadas ou anotadas em caderno. Podemos afirmar que existe uma postura corporal definida para a sensualidade, dor ou desespero, mas ela é sutilíssima, feita de nuanças de voz, de ritmos e tempos ligeiramente diferentes e de uma qualidade diferente e sutil de gestos e expressões. Não dá para pressupor uma forma única de manifestação desses aspectos ou usar apenas recursos exteriores de caracterização, vestimentas ou congêneres. Pensar assim seria cair em estereótipos pré-estabelecidos, matando qualquer possibilidade de ações físicas orgânicas, verdadeiras e coerentes. Por outro lado, ignorar esses elementos e percepções seria desperdiçar o ponto de vida e organicidade que há em cada foto, gesto ou minuto de gravação, porque implicaria ignorar o contexto no qual vive o indivíduo ou grupo humano observado.
Os atores sabem que essas “energias” existem, sabem que essas energias emanam dos corpos das pessoas, e cabe a eles percebê-las e transformá-las em corpo.
É nesse ponto que colocamos o problema: sem fatores concretos, como fotos e gravações, como o ator pode “imitar” a energia percebida? Na verdade, uma imitação propriamente dita é impossível, ao menos sem cair em estereótipos. Então, a única saída possível é o ator, novamente, encontrar, dentro dele mesmo essas energias e ligações orgânicas, criando, assim, um equivalente mimético.
Em recentes reuniões de reflexão entre os atores-pesquisadores do LUME e seu Conselho Científico e Artístico, a atriz Ana Cristina Colla disse que sua imitação de Dona Maria, utilizada no espetáculo Contadores de estórias, e que é feita pela atriz desde 1993, torna-se mais viva e orgânica à medida que ela se distancia da matriz original de Dona Maria. Essa afirmação pode parecer paradoxal, se pensarmos que o objetivo da mímesis é imitar precisamente as ações físicas e vocais das pessoas. Mas do ponto de vista orgânico, ela é muito natural, pois a atriz, com a ajuda dos fatores tempo e trabalho, abandona-se cada vez mais às ações físicas e vocais da pessoa idosa imitada, encontrando as ligações orgânicas pessoais e próprias em relação à matriz original, chegando, dessa forma, a um equivalente pessoal para essa mesma matriz. Essa distância de que fala a atriz pode ser entendida, portanto, como um mergulho pessoal dentro da própria matriz. Ela se distancia-se de Dona Maria e aproxima-se de suas próprias energias, buscando sua equivalência. E a própria atriz completa:

É como se eu mergulhasse na essência da matriz, que no caso é Dona Maria. A voz, antes, quando imitada precisamente, não dava noção de velha. À medida fui me abandonando à sensação dessa ela mudou ligeiramente, mas ao mesmo tempo, encontrei orgânica matriz. Agora, muito mais precisa pois parece estou imitando sua vida, e simplesmente suas ações. se, com o tivesse encontrado em meu corpo fragilidade dos oitenta anos. necessito provocar tremelicar externo, observado Basta mergulhar universo descoberta, do voz essa debilidade movimentos aparecem naturalmente minha musculatura (Ana Cristina Colla, entrevista concedida 1998).

Nesse ponto, a Mímesis Corpórea encontra os outros trabalhos e a própria filosofia de trabalho do LUME. Como já visto, o objetivo do ator é realizar um mergulho dentro de si, na busca de suas energias escondidas e guardadas. Isso é possível por meio do treinamento cotidiano sistemático e intenso dos elementos pré-expressivos e de ponte discutidos até o momento.
Entendemos, então, que o ator deve ter um aprimoramento e um aprofundamento na sensibilidade do próprio corpo, para ser um receptor de energias e vibrações das pessoas que está imitando e observando no trabalho de campo.
Na Mímesis Corpórea, o ator, em hipótese alguma, deve restringir-se apenas à imitação dos gestos, apesar de esse mesmo trabalho de observação e imitação dos gestos ser importante, necessário e fundamental para o trabalho de mímesis e, conseqüentemente, para o aperfeiçoamento técnico, visto que “obriga” o ator a treinar precisão, colocação do corpo no espaço cênico, exploração de ritmos da mecânica do corpo e no aprendizado de dominar e conduzir o corpo no tempo/espaço.
Porém, o ser humano não é somente corpo físico, mas um corpo físico vivo com sensações, afetividades, impulsos, sentimentos, pensamentos, energias e vibrações. O ator-pesquisador deve ter um corpo físico desenvolvido e preparado, e além disso, e mais importante, ser conhecedor do seu universo humano e energético.
Os trabalhos do LUME, citados, permitem ao ator aguçar, aflorar e desenvolver suas energias, para que ele possa criar um corpo dilatado e presente, colocando à disposição da cena, da personagem e do público todos os seus sentidos: a isso chamamos de “presença total do ator”.
Esse mesmo treinamento pode permitir ao ator, no momento da observação, uma percepção das emanações dessas energias, podendo até mesmo detectar onde e em que musculatura do seu corpo essas emanações produzem algum efeito, para, posteriormente, reproduzi-las e pesquisá-las em sala. Essa reprodução não pode ser chamada simplesmente de cópia muscular da percepção da energia, já que o ator busca reproduzir no corpo a sua própria energia, apenas baseado na percepção energética da pessoa imitada. Aqui, ele cria um equivalente orgânico da energia percebida, e portanto também orgânica. Podemos chamar esse processo de “memória energética”.
Isso, de certa forma, explica também porque um ator escolhe uma pessoa, e não outra, durante a pesquisa de campo. Pois algumas pessoas, mais que outras, de certa forma suscitam no ator essa empatia energética, que será fundamental no momento do trabalho em sala. Isso se aplica também a fotos e quadros, porém, de maneira indireta. As fotos e os quadros irão suscitar imagens com as quais o ator identifica-se ou não, provocando nele alguma reação orgânica. Por meio da mímesis da foto ou do quadro, o ator deve “corporificar” essa reação e criar, também, um equivalente.
A mímesis, portanto, permite ao ator um intenso treinamento na manipulação dessas energias sutis.
Pode parecer, em primeira instância, um trabalho muito abstrato, mas devemos nos lembrar que todo o processo inicia-se por questões muito objetivas e concretas: a mímesis precisa das ações físicas e vocais, sua memorização e codificação. A partir desse universo concreto, parte-se para a pesquisa das ligações orgânicas e pessoais entre as ações e o ator, também embasada em elementos concretos anteriormente trabalhados, por meio dos elementos pré-expressivos. Recorro, novamente, aos próprios atores para substancializar, ainda mais, essas palavras:

O fantástico da mímesis é que ela me aproximou muito do teatro ao qual estamos habituados, “teatro de personagem” vamos assim chamar, sem contudo fugir de todos os conceitos que eu havia assimilado anteriormente. A mímesis me fez enxergar que em qualquer lugar existe o pretexto para fazer teatro. Se estivermos atentos para as coisas e os seres que nos cercam, teremos sempre ao nosso alcance o motivo, o ponto de partida. A mímesis é uma brincadeira séria. Brincar de ser o outro, de agir como o outro: brincar de ser vários num só. Brincar também de ser fada, de dar vida às coisas estáticas, de dar três dimensões àquelas que não as têm. Um quebra-cabeças para lá de complexo, que depois de montado uma vez não se desfaz jamais e, pelo contrário, ganha vida própria e o direito de se transformar. A mímesis modificou totalmente o meu olhar e fez surgir uma ligação direta entre olhar, coração, músculo, nervo. Me sinto uma escultora esculpindo em meu próprio corpo. Acho a mímesis muito importante também porque é um trabalho que me conecta com um mundo real, que me põe diante de questões muito concretas da minha pessoa em relação ao meio (Raquel Scotti Hirson, entrevista concedida em 1997)

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1 Carlos Roberto Simioni. Mimeo, 1998.
2 Raquel Scotti Hirson – Relatório científico. Mimeo, 1998.
3 Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson – Relatórios científicos. Mimeo, 1998.

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